Amadeu voltava para casa depois de um dia cansativo no trabalho. Amadeu trabalha no setor de produção de uma fábrica de copos; passa o dia todo em meio àquele calor infernal, que se soma ao barulho incessante das máquinas para produzir um ambiente capaz de tirar a sanidade de muitos. Amadeu estava a ponto de perder a sua, acreditava. No caminho de casa, uma blitz policial no meio do caminho fazia o trânsito ficar lento, e dentro do seu carro (comprado usado, ano 87) Amadeu só pensava em chegar em casa, para comer e dormir tranquilo. Mas, ao passar pela blitz, um policial ordena que Amadeu encoste o carro.
- "Documentos, seu e do carro", ordena o policial
- "Boa tarde seu guarda, aqui estão. Algum problema senhor?", pergunta Amadeu
- "Sem gracinhas, sua lanterna direita está com o vidro quebrado, o senhor sabia?"
- "Mas seu guarda, eu não ví isso; quando estacionei o carro pela manhã estava tudo em ordem. Deve ter sido algum moleque que fez isso"
- "A lei é clara meu senhor, vou ter que tomar uma providência", disse o policial
- "Mas só por causa de uma lanterna com o vidro quebrado? Tenha paciência, senhor, por favor!"
- "Sabia que eu posso prendê-lo por desacato à autoridade? Acho melhor o senhor se acalmar e fazer alguma coisa..."
- "Desculpe senhor, mas, como eu disse, não é culpa minha. E o que eu posso fazer, senhor?"
- "Olha, eu posso esquecer isso tudo e deixar você ir embora tranqüilo se você deixar aí um trocado pro café do guarda, entende?"
- "Sim senhor, eu entendo", disse Amadeu, pegando três notas de 1 real e mais algumas moedas que estavam no porta-luvas do carro
- "Tá querendo brincar comigo? Olha moço, minha caneta não é lápis, se eu anotar alguma coisa aqui, não tem como apagar não!"
- "Mas eu só tenho esse dinheiro seu guarda, o senhor tem que acreditar..."
- "Não tem nem 10 reais pro meu café?", falou o policial
- "10 REAIS! Mas que cafezinho caro hein, seu guarda", disse Amadeu, já sem paciência
- "Tá maluco moço?! Pode saindo do carro agora, e com as mãos para cima"
Nisso, Amadeu ouve alguns tiros, e quando o policial vira para trás para ver o que é, cai no chão ferido por uma bala. Amadeu consegue ver que uma kombi cheia de bandidos mascarados parou na contramão e matou todos os policiais da blitz, e agora estão assaltando alguns carros. Amadeu fica sem saber o que fazer, e então surge um bandido no lado esquerdo, aparentando não mais que 16 anos; ele dá mais um tiro no corpo caído do policial, para na janela de Amadeu e diz:
- "Passa a grana aí patrão, celular também, e anda logo"
Amadeu não consegue nem se mexer de medo, e nisso aparece um outro bandido que diz ao primeiro:
- "Tá maluco muleque, esse aí é trabalhador porra!"
E dirigindo-se a Amadeu ele fala:
- "Mete o pé tio, rala peito!"
Amadeu liga o carro e sai desesperado daquela situação. Ainda desnorteado, chega em casa, vai tomar seu banho, come e logo vai se deitar, assustado com toda aquela situação. Já deitado, um breve pensamento faz Amadeu sentir um frio na barriga: "Foi aquele bandido, no final das contas, que me salvou. O guarda, que devia me proteger, queria me roubar; e o bandido, que devia me roubar, acabou me protegendo". Amadeu se esforçou para tirar esse pensamento da cabeça, queria muito estar errado, mas sabia que estava certo...
domingo, 18 de março de 2007
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14 comentários:
Chamaria de crise de valores, não de inversão de valores...
Discordo. Os valores são, acredito, socialmente construídos; e o meu pequeno texto ilustra uma inversão de dois valores, expressa na frase-pensamento de Amadeu: "Foi aquele bandido, no final das contas, que me salvou. O guarda, que devia me proteger, queria me roubar; e o bandido, que devia me roubar, acabou me protegendo". Isso não é uma crise, pois os valores expressos não foram "confundidos"; eles foram trocados.
Mas achei seu comentário muito interessante!
Não deixa de ser uma inversão, mas é resultado de uma crise.São várias coisas que levam o policial a não cumprir sua função, e o bandido levar em consideração que o cara é trabalhador... O bandido por exemplo não se torna bom pelo que fez, talvez nem justo...
Continuo discordando. Não existe crise alguma nesse caso; o que levou o policial a não cumprir o seu dever foi a sua inserção na ideologia capitalista-burguesa do individualismo. O bandido levou em consideração o cara ser trabalhador porque sabe que o cara está na mesma situação que ele. E, para Amadeu, certamente o bandido se tornou bom. É complicado analisar só sob um ponto de vista e afirmar que o bandido não se torna bom pelo que fez ou dizer que o policial tem muitos motivos para fazer o que fez.
A inversão se dá pela crise. O que seria uma crise de valores? Seria quando os valores são deixados de lado,não norteiam mais a vida de ninguém; ou quando eles estão em segundo plano. Tanto para o bandido quanto para o policial, os valores estavam em segundo plano, o que levou à uma inversão social de valores.
P.S.: Não estamos pensando diferente, estamos escrevendo diferente.
Discordo. Os valores, para ambos (o bandido e o policial), não estavam em segundo plano, muito pelo contrário: eles estavam em primeiríssimo plano. O que aconteceu é que o policial estava com um valor que deveria ser de bandido e o bandido estava com um valor que deveria ser de policial.
P.s.: Não tente parecer inteligente querendo se aproximar de meu brilhante pensamento!
É preciso entender o que nós estamos chamando de "valores".Eu estou chamando de ética, compreensão, responsabilidade,... Por esse meu entendimento não dá pra ver um "valor que deveria ser de bandido", por isso os valores estão em segundo plano. Em primeiro plano está sua necessidade de roubar.
P.s.:Tão brilhante assim?
Acredito que você deveria chamar isso, então, de "valores positivos" ou "valores desejáveis"; não é porque algo é errado ao nosso entender que ele não é um valor. E, se relativisarmos e olharmos do olhar do bandido, ele poderá ser visto como ético, compreensivo e responsável, por isso não acho que é crise, e sim inversão.
P.S.: Sim!
"Diremos que o valor é uma maneira de ser ou de agir que uma pessoa ou uma colectividade reconhecem como ideal e faz com que os seres ou as condutas aos quais é atribuido sejam desejáveis ou estimáveis"(G. Rocher, Sociologia Geral, Editorial Presença)
Não sou só eu que define valor assim, mas pensando como você, sim
é inversão. (mas não estou pensando como você!)
A coletividade daqueles bandidos reconheciam como ideal que trabalhadores não fossem assaltados, tanto que quando um advertiu o outro nem contestou. É um grave problema, acredito, associarmos os conceitos somentes àquilo que é dominante na sociedade. Os bandidos podem ter (e tem) seus próprios valores, mesmo que esses, inicialmente, fossem esperados da polícia. Por isso é uma inversão, não uma crise.
Não estou negando que seja uma inversão, só estou dizendo que ela resulta de uma crise...
Primeiramente, você nega sim que é uma crise, pois afirma: "Chamaria de crise de valores, não de inversão de valores...".
E mesmo assim, eu nego que essa inversão resulte de uma crise. Como tentei mostrar antes, é exatamente o contrário. Gostaria que você exclarecesse onde vê a tal crise.
A inversão ocorre porque existe a crise...
E mesmo assim, eu nego que essa inversão resulte de uma crise. Como tentei mostrar antes, é exatamente o contrário. Gostaria que você exclarecesse onde vê a tal crise. [2]
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