quinta-feira, 10 de abril de 2008

A Descendência

"Não, você NÃO me avisou antes", gritou Augusto, desesperado, as mãos pequenas e frágeis escondendo o rosto molhado pelas lágrimas que, insistentemente, vertiam por seus olhos. "Você não pode me culpar, Augusto, não pode mesmo. Você não tem esse direito, e sabe disso". Lógico que Augusto se calou, ele sabia do que Leona era capaz, e, mesmo sabendo que estava certo, não queria irritá-la - ela já o tinha machucado o bastante. Mas Leona continuava: "Nada de promessas, lembra? Você sabia que eu estava te usando, eu sabia que você estava me usando, e ponto final. Não entendo porque essa choradeira toda, não entendo mesmo. Só pra te deixar avisado, ISSO NÃO VAI ME COMOVER!!". Augusto tinha consciência perfeita de que, intelectualmente falando, era o mais dotado entre os cinco; mas coisas como essa só lhe mostravam que isso não queria dizer muita coisa, o cérebro ainda lhe era um perfeito estranho (para Augusto, mesmo antes dos poderes, a analogia "coração" sempre pareceu indevida). Leona tinha conseguido, só com algumas palavras, acabar com ele, com suas defesas, com seu conforto. Ela mesma sabia que, se Augusto estava falando, é porque DE FATO aconteceu; mas ela era boa nas palavras, Augusto não - não em situações como essa. "Leona, sinceramente, não sei de onde você tirou essa idéia de que eu estava te usando. Isso é só um conforto que você criou para você mesma, nós dois sabemos disso; mas não sei porque alguém capaz do que você fez precisa de mentiras pra se confortar. Você olhou para o abismo, Leona, e olhou fundo - aproveite!". Pela primeira vez, ao menos com Augusto, Leona sentiu as palavras faltarem - e Augusto percebeu. "Quer ficar com sua Filosofia barata, Augusto? Então fique. Não tenho que te dar satisfações mesmo, eu faço o que quero e, sinceramente, eu quero o que faço". Augusto sorriu, um sorriso pleno de satisfação. Mesmo querendo ir embora vitoriosa, Leona não resistiu àquilo, virou-se e perguntou: "Está rindo de que?". Augusto enxugou as lágrimas (que eram tantas e lhe fizeram desastrar-se com isso), olhou-a nos olhos e disse: "Você percebeu, claro, que terminou a sua frase com uma inversão dialética. Isso é muito engraçado, muito mesmo. Você não percebeu que pautou sua vida em algo que você mesma vivia criticando, escrevia artigos contra, debatia, perguntava. Valeu a pena, Leona, você acha mesmo que valeu a pena? Você decidiu viver a vida com intensidade, e foi fundo nisso - só que o caminho mais fácil para a intensidade é a descida, claro. E, como eu disse, lá estava o abismo, e você, fascinada, só fez observá-lo. Você esqueceu tudo o que nós conversamos, todos nós, desde o começo; nós tínhamos um objetivo, você lembra, Leona? Claro que lembra, nem precisa ter o meu poder pra lembrar. Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida, não é isso? Não é assim? Mas não foi esse o seu caminho, Leona. Sentar e esperar dói, não dói?! Mas eu esperei, e eu ainda espero. E vou esperar, mesmo que seja para sempre. Você quis ir mais rápido, para conseguir intensidade - não percebeu que o ganho estava sendo secundário. Se você acha que está certa do que faz, faça, vá; eu não quero, e não vou me meter. Eu só lamento, muito, por você e por mim". Leona ficou parada, sem ação, ao ouvir as palavras de Augusto; dessa vez, foi ela quem chorou (não que Augusto tivesse parado). Ela abaixou a cabeça, e com passos arrastados foi até Augusto, e abraçou-o; um abraço sincero como, há anos, não dava em ninguém. Seu abraço tinha mais força que todos os seus golpes, em todos os vilões, mas esse abraço não causava a mesma dor. Só causava dor, na verdade, porque o abraçado era Augusto. Todos os abraços que Leona já havia recebido soavam como golpes para Augusto, e isso doía. Um barulho surdo, oco, seco, rápido, fez-se perceber pela sala. Leona afastou o rosto do ombro de Augusto e, com um semblante de evidente confusão, olhou-o nos olhos, como quem pergunta "por que?". Augusto retirou-lhe a faca das costas, deitou-a no chão, e disse-lhe as palavras mais doces do mundo: "Torna-te o que tú és". Leona sorriu-lhe, inesperadamente para ambos, e apontou para sua mochila - esse foi sua última ação. Augusto, sentindo cada fibra do seu corpo doer, caminhou até a mochila de Leona e abriu-a, para encontrar, em meio aos cadernos e livros, um pequeno embrulho. Abriu, lentamente, e viu que era um livro; um livro que, surpreendentemente, ele não conhecia. Na capa, em letras roxas sob um fundo azul, lia-se "O Movimento Babaca"; na contra-capa, na letra suave de Leona, Augusto pode ler "Para o meu estranho amor". A dor foi tanta que Augusto desmaiou, para só acordar dias depois...

3 comentários:

Marcus César disse...

Argh, que raivinha!
E, para quem, entre os poucos possíveis, se preocupa com o futuro de "A Descendência", fiquem tranqüilos e;ou tranqüilas - isso é beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeem pra frente!

Anônimo disse...

É díficil não achar que tem alguns elementos da sua vida (principalmente quando se acha alguns desses elementos) embora eu saiba que uma parte deveu-se a minha imaginação...

Marcus César disse...

Imaginação fértil a sua, não?!